Desvio de rota

Faíscas fazendo acrobacias e contornando o ar dessa cidade cinza que, com certa dificuldade, ainda respira.

Pedras rolando e invadindo sapatos de sola gasta, sem qualquer cerimônia, sem pedir licença pra ninguém.

Caixas velhas e empoeiradas pelo chão da casa, abrigando recordações de uma infância machucada.

Olhos azuis que se confundem com a vermelhidão da triste realidade, regados por lágrimas de sono e de dor.

Dedo em riste, como de um general enfurecido que sempre exige mais e mais de sua tropa, querendo ganhar as coisas sempre no grito e na violência.

Pessoas desfilando nas ruas, vestindo sua melhor roupa para ver a qualquer momento a grande tragédia de todos os tempos.

Caras e bocas em selfies milimetricamente enquadradas, enfeitando em poucos segundos a rede social mais hipócrita que se tem notícias.

Muros pichados à luz do dia, vociferando para o mundo todo tipo de assédio, abuso, perda, ódio e vingança.

Declarações de amor, pieguices à toa, como plantas que nascem em meio a um limo que algum dia cobriu águas passadas.

Crianças valentes, que deixam a imaginação falar e quebram o silêncio constrangedor das filas de banco, às três e quarenta e sete da tarde de uma terça-feira intragável.

Trânsito, poluição, freada brusca, vidros fechados, faixa de pedestres, semáforo, curva suave à esquerda, 'em 500 metros chegaremos ao destino'.

Ué.

Errei a rua.

Recalculando.

Comentários

  1. Seu texto me tocou muito.
    Não sei de qual forma me identifico com ele ainda, mas me pegou direitinho.
    Era aqui que eu deveria estar.

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    Respostas
    1. Fico feliz, Vivian!

      Tenho um jeito de escrever que quase sempre acaba sendo muito de mim pra mim, mas às vezes esse limite extrapola e vai pro mundo.

      E que bom que isso acontece, porque é aí que eu percebo o quanto essas palavrinhas doidas que martelam minha cabeça do início ao fim se tornam questionamentos tão próximos aos de outras pessoas.

      Obrigado por ler, entender, sentir alguma coisa. Que seu ano seja encorajador!

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