Aos fatos novos

Ela olhava fixamente há muito tempo para aquele bloco de anotações vazio. Presente dos seus pais. "Eu quero ser jornalista, desbravar o mundo, entender as coisas", assim ela dizia.

A sua escrivaninha tinha diversos recortes de jornais e revistas, formando um bonito acervo de meias verdades. Desde a primavera passada, ela procurava um fato novo. Algo que a completasse e que não fosse outra coisa banal. Quando sentia que era hora de dormir e que as pálpebras estavam mais pesadas que poderia suportar, lutava contra o sono e vencia. A insônia sempre foi sua arquirrival, desde muito pequena.

Virando de um lado a outro da cama, resolveu descer as escadas e foi em direção à cozinha para matar a sede com um copo d'água. Levou o bloco de anotações e começou a ter ideias. Em pouco tempo, aquele bloco estava recheado de rascunhos sem sentido. Era tudo o que havia conseguido.

De repente, ela ouviu um barulho vindo da rua - algo que até hoje ela não sabe dizer se foi fruto de sua imaginação ou se era real. Com um pouco de medo, resolveu checar o que estava acontecendo. Encontrou um senhor de bastante idade caído, machucado, revirando latas à procura de comida.

Um misto de sentimentos veio à tona: sentia pena daquele homem velho, ao mesmo tempo que sentia raiva de si mesma por se preocupar com coisas tão bobas. Queria ajudá-lo, mas não sabia de que forma poderia.

Convidou-o para entrar em sua casa. Ouviu a negativa do homem, mas insistiu no convite. Enfim, os dois entraram na casa. Mesmo com o barulho, ninguém na rua havia percebido a movimentação. Teve uma grande surpresa ao finalmente conseguir olhar nos olhos daquele pobre homem: lembrou de seu avô, que havia partido há menos de um ano, vítima de uma doença degenerativa. Mesmo espantada com tamanha coincidência, permaneceu firme e procurou ajudar aquele homem no que podia. Deu comida, ofereceu o chuveiro para um bom banho e preparou uma cama confortável para ele.

Viu que aquele senhor estava cansado e resolveu dormir também, com a sensação de dever cumprido. Quando estava saindo do quarto, ouviu um agradecimento sincero do homem. Emocionada, deu um abraço nele e saiu do quarto segurando o choro.

Ao acordar, foi conferir se o homem ainda estava na casa. Não estava. Ficou triste ao perceber que não havia sequer perguntado o nome dele, quanto mais ter conversado para saber o que ele fazia ou por que ele estava morando na rua. Quando pensou que estava com as esperanças perdidas, encontrou um bilhete debaixo do travesseiro que ele havia usado para dormir. Começou a ler:

“Você pode não saber quem eu sou, mas me entendeu mais que meus próprios filhos. Deixo para você a história da minha vida. Escreva um livro, voe mais alto. Você consegue. Boa sorte”.

Ao terminar de ler o bilhete, não conseguiu conter o choro. Ela sabia que aquele era a resposta que tanto buscara nas madrugadas que passou em claro, atrás de qualquer inspiração. 

Nas noites seguintes, não teve mais insônia. Os dias corriam e ela tinha sempre boas ideias para escrever. Arrumou um bom emprego no maior jornal da cidade, escrevia artigos e crônicas que encantavam muitos leitores. Com pouca idade, tinha a responsabilidade de passar seus sentimentos a quem quisesse dar atenção.

Nunca mais ouviu falar daquele homem. Também nunca comentou com seus pais sobre aquela noite. Volta e meia, pensava nele enquanto olhava as estrelas do céu. Talvez estivesse agradecendo a cada uma delas, ao passo que elas retribuíam brilhando cada vez mais.

Comentários

  1. Acabei de inventar uma lei que proibi o senhor parar de escrever.
    E as punições são pesadas se você derrespeitar a lei. Apenas.

    Um beijo, lindo texto.

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