O sonho dela

O relógio já apontava quatro e vinte e cinco da manhã. No sofá da sala, em meio a caixas de chocolate, garrafas de vinho barato e pacotes de bala, lá estava ela assistindo a um filme com James Dean e se declarando a ele. Bêbada, completamente envolvida pelo efeito do álcool e pelo passar das horas. O coração cheio de ranhuras, chorando em mi com sétima. Ou seria ré menor? Variação esquisita de acordes.

Havia acontecido uma briga feia na noite anterior. Seu namorado, todo cheio de razão, foi ao seu encontro e resolveu dizer tudo o que há muito tempo o chateava. Ela aceitou, ouviu sem dizer nada. Ao ouvi-lo batendo a porta de seu quarto com força, passar o cadeado em seu portão, arrancar o carro até cantar os pneus, decidiu chorar. Já passava das dez e meia da noite quando isso aconteceu. Desde então, nenhuma reação. Nada fazia com que ela acreditasse que tudo voltaria a ser como no primeiro dia, estranhamente o melhor de todos que eles já haviam passado juntos. A inocência também sabe golpear.

Ela decidiu pegar suas coisas e descansar na cama. Naquela manhã, lá por nove horas e quarenta e cinco minutos, acordou. Lavou o rosto, escovou os dentes e foi comer qualquer coisa na cozinha. A empregada, sempre muito fofoqueira e curiosa, reparou nas olheiras e decidiu perguntar o que estava acontecendo. Ela não dirigiu uma palavra. Apenas sorriu, apanhou seu pedaço de pão e seu copo de suco de manga e foi comer em frente à sua casa, num jardim que dava de frente pra rua. Tudo o que ela queria era esquecer qualquer resquício de dor que pudesse acabar com mais um de seus dias.

Aguentou firme. Olhou para o seu relógio de pulso e viu que estava muito atrasada. Arrumou-se rapidamente e correu para tomar o primeiro ônibus que pudesse parar num lugar próximo ao seu trabalho. A cabeça voava, enquanto a música que tocava em seu iPod era exatamente uma que lembrava seu namorado. Ou seu ex-namorado, nem ela sabia mais. Tirou rapidamente, trocando para uma mais neutra. Nada adiantou. 

Em meio ao movimento do ônibus, ao entrar e sair das pessoas e ao cagaço de chegar mais uma vez atrasada no trabalho e não saber qual reação teria sua chefe, ela resolveu descer na próxima parada. Não era onde ela deveria descer. A parada era em frente a uma cafeteria famosa, e ela reuniu forças para entrar e pedir algo para beber. "Hora de relaxar, para depois pensar no que fazer. O que tiver que ser, será", pensou ela.

De repente, uma ligação em seu celular. Seria ele? Seus olhos brilharam com a possibilidade, mas logo ficaram opacos e preocupados ao ver que era sua chefe lhe dizendo que ela deveria passar no departamento pessoal e assinar a rescisão. Três atrasos injustificáveis em menos de uma semana eram sinal de falta de comprometimento com a empresa, algo inadmissível. Mais uma vez, ela aceitou sem reclamar. Ela estava pouco se importando para alguns trocados no fim do mês. O coração dela não precisava de dinheiro.

Quando chegou a noite, ela voltou para casa. Lá estava seu namorado, pedindo desculpas pela noite passada. Os dois se entenderam muito bem, como se nada tivesse realmente ocorrido, a não ser um pesadelo.

E, de fato, era apenas um pesadelo. Quando ela acordou, estava estirada no sofá, cheia de caixas de chocolate, garrafas de vinho barato e pacotes de bala em volta, enquanto que um filme do James Dean passava na tevê. Bêbada, completamente envolvida pelo efeito do álcool e pelo passar das horas, mas feliz.

Ele estava ao lado dela, assistindo ela dormir o tempo todo. Naquela manhã, não houve atraso no trabalho e a confiança andava ao seu lado sem soltar da mão. Estava absolutamente segura, boa parte pela noite que teve ao lado de quem ela amava.

Seu coração cantava algo bonito, estranhamente afinado e leve. 

Parecia o amor em forma de som. Bom, talvez fosse mesmo.

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